Muita gente ainda acha que as redes sociais são terra de ninguém, lugar de “liberdade de expressão” sem contraste. Será verdade? Vamos testar?
A rede descentralizada de computadores foi desenvolvida a partir de um projeto com objetivos militares, a ARPANET: a ideia era organizar de forma descentralizada as defesas das forças armadas norte-americanas caso sofressem um ataque massivo contra seu centro de decisões na capital.
Entretanto, cientistas, programadores, ativistas da contracultura e empreendedores rapidamente identificaram o potencial dessa infraestrutura que conectava computadores em distâncias continentais. Libertaram o projeto das suas restrições bélicas originais, e construíram um espaço virtual que parecia não ter limites.
Mas os sonhos de liberdade dos primeiros anos da internet rapidamente colidiram com a dura realidade de ameaças, invasões virtuais, desinformação. Nesse mesmo módulo [LINK INTERNO – FAKE NEWS JÁ É CRIME?], nós já vimos como os governos responderam à ameaça das fake news com novas leis e processos criminais.
Como Lawrence Lessig, professor da faculdade de direito de Harvard, costuma dizer, “a ideia (e mesmo a vontade) de que a internet permaneça desregulada foi abandonada”. A regulação veio para ficar. Mas o Estado não é o único que define as regras.
Os pesquisadores da USP Márcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado lembram que, do lado da regulação governamental, existe também outras formas de influenciar – e até mesmo limitar – condutas indesejadas online. É a chamada autorregulação, ou seja, as regras definidas e fiscalizadas pelos próprios responsáveis por esses serviços.
As empresas que oferecem serviços de conexão e plataformas online têm o poder para definir que tem acesso e o que pode ou não ser feito lá dentro. Ao lado desse código de conduta, que determina as regras desejáveis, existe também o código da programação, que define o que é possível ou não fazer online. É esse código digital que determina, por exemplo, qual conteúdo é relevante para você receber em uma rede social, ou para onde vão as mensagens que você enviar.
Quem define essas regras internas são instituições privadas. E os códigos mudam toda hora, a cada atualização do software e a cada novo termo de conduta que temos que aceitar – mesmo sem ler atentamente ou sem ter poder para discordar e alterar seus termos.
A dura realidade é a seguinte: basicamente, alguém aperta um enter na Califórnia e o funcionamento do Google, do Facebook ou do Twitter pode mudar ao redor do mundo inteiro.
Não é surpresa nenhuma que essas plataformas tenham sido muito pressionadas para agir em resposta à proliferação de notícias falsas. Elas apresentaram mudanças logo que a crise ficou evidente, no final de 2016, e tem feito novas alterações periódicas desde então. Entender como elas mudaram o funcionamento da rede até aqui é essencial para vislumbrar o que ainda pode – e precisa – ser feito.
O coletivo de ativistas Intervozes desenvolveu um estudo que sistematiza as principais respostas das redes sociais para o combate às fake news nos últimos anos. A partir dos dados desse trabalho, é possível organizar as medidas mais frequentes no combate às fake news na trincheira da autorregulação, partido das armas mais leves até as de maior calibre:
A polêmica entre a autorregulação e as regras impostas de cima para baixo por uma autoridade política deixa de lado uma terceira via: uma construção das regras por entidades públicas, com participação ativa. Esse é o caminho do meio, a chamada corregulação.
É uma alternativa interessante, pois ajuda a evitar as armadilhas dos dois extremos da regulação estatal e da autorregulação. Como já vimos, uma regulação governamental pode abrir espaço para censura em regimes autoritários. Por outro lado, sem nenhum controle público, as empresas proprietárias das plataformas também podem abusar de sua autonomia, mudando códigos de conduta em suas páginas e removendo conteúdos relevantes, mas incômodos para seus interesses comerciais.
Essa é a proposta de um grupo de entidades latino-americanas que defendem um modelo misto de regulação.
Para isso, as plataformas poderiam definir com representantes do público quais seriam as regras gerais de conduta e os procedimentos para julgamento e apelação. As redes sociais continuariam a decidir seus casos internos. Entretanto, se esses processos não forem transparentes ou se ignorarem as regras definidas coletivamente, entidades governamentais poderiam então punir as plataformas. Mas nessa proposta o Estado não teria o poder de interferir em casos específicos, censurando ou liberando conteúdos de acordo com suas preferências políticas.
Enquanto cada país tenta montar as peças desse quebra-cabeça, também se discute uma outra forma de regular essas plataformas por meio de acordos e tratados internacionais. Como as plataformas digitais oferecem seus serviços para o mundo todo, normas globais garantiriam um patamar mínimo de direitos e deveres, que poderia ser complementado por cada país, se necessário.
Para melhorar as plataformas online, temos muitos caminhos pela frente. Só falta agora decidir – de forma democrática – qual trilha seguir.