Aqui neste curso, a gente leva a educação e o debate racional muito a sério. De fato, uma visão questionadora diante dos conteúdos que a gente consome e produz é essencial para a vida prática. Você já conhece um de nossos mantras: informação de qualidade leva a decisões de qualidade. Ser mais racional e menos passional é um caminho fértil para viver melhor. Assunto resolvido?
Longe disso. Há um aspecto para o qual se presta pouca atenção, mas que a gente não pode ignorar. Estamos falando do papel das emoções no dia a dia. E de como muitas vezes a gente está imerso em um oceano de afetos, positivos e negativos. Essas emoções podem turvar nossa capacidade de pensar e nos levar a tomar decisões irrefletidas, prejudicando nossas vidas e a de quem nos rodeia.
Antes de tudo, é preciso abandonar a ilusão de que as pessoas agem guiadas apenas por sua cabeça. Para ficar na figura dos órgãos humanos, nossas escolhas devem muito ao coração — e no contexto atual, também ao fígado. O nome um pouco complicado deste capítulo tem a ver com o uso das emoções para enganar. A gente chega lá.
Antes, um reconhecimento: claro que o afeto é fundamental na tomada de decisões. Sentimentos como indignação e compaixão são motores importantes para ações de solidariedade e de olhar para o outro que, no fundo, são um dos aspectos que nos distinguem como seres humanos. Mas muitas vezes eles invadem um terreno que deveria ser muito mais racional do que emocional…
Quer um exemplo concreto? Experimente tentar mudar o voto de uma pessoa. Imagine que você tem um amigo ou amiga que adooooora um candidato sabidamente corrupto. Você pensa:
— Essa vai ser fácil. É só mostrar reportagens confiáveis com as falcatruas comprovadas para a pessoa cair em si.
E é o que você faz. Mas, diferentemente do que você havia imaginado, seu amigo ou amiga mal escuta o que você tem a dizer. E depois de seu discurso inflamado, se sai com uma — ou várias — das respostas abaixo.
Quais você já ouviu?
– Beleza, mas todo mundo rouba. Não mudo meu voto.
– Pelo menos ele é sincero. Confio nele.
– E o outro partido, hein?
– Não me importa desde que seja um homem que defende Deus e a família.
– Ele é humilde e entende o povo.
– Está na cara que ele estava brincando. Já até pediu desculpas.
– Você está apoiando o outro lado, que é comunista e quer destruir as tradições
– Você está fazendo o jogo dos fascistas que querem matar os pobres!
– Tudo isso é fake news, a mídia é manipulada contra meu candidato.
O que há em comum entre as respostas acima? Isso mesmo: todas elas são muito carregadas de uma avaliação emocional. É uma ilusão pensar que o voto seja uma escolha 100% racional. Não é. Na verdade, o exame das evidências, dos planos de governo, da ficha corrida dos candidatos — ou seja, o pensamento crítico — é exceção.
Acontece nas eleições, acontece na vida. O historiador, sociólogo e escritor Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), considerado uma das maiores referências no estudo das características que nos fazem brasileiros, já havia chamado a atenção para isso. Buarque de Holanda escreveu que nossa vida social seria regulada por “simpatias espontâneas”, que organizam nosso mundo em afetos e desafetos, pessoas e coisas de que gostamos e que detestamos. Isso é ainda mais evidente no atual contexto, o da pós-verdade. Não custa lembrar: pós-verdade é uma época — a nossa época — em que as opiniões importam mais que os fatos, em que a emoção dá de goleada na razão.
Muita gente sabe do poder das emoções na tomada das decisões. E usa isso como uma arma para benefício próprio, alimentando na população afetos negativos como o medo e o ódio.
Isso é bastante evidente em momentos de aumento do autoritarismo. O livro clássico “Psicologia de Massas do Fascismo”, do psicanalista austríaco Wilhelm Reich, mostra como os discursos de Adolf Hitler, nas décadas de 1930 e 1940, eram a base que sustentava o apoio popular ao nazismo.
O que fazia Hitler? Discursando para grande multidões, elegia adversários e os transformava em inimigos. A diferença, você sabe, é que adversários você vence dentro de um jogo. E inimigo você destrói.
Atribuindo a certos grupos sociais, como judeus, negros, ciganos e homossexuais a responsabilidade por diversos problemas sociais, do desemprego a doenças, o ditador alemão fez com que boa parte da população passasse a odiar essas pessoas e ver nelas uma ameaça.
O Holocausto, massacre em massa de judeus e outras minorias nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi alimentado por essa crença falsa, pelo medo e pelo ódio. Hitler, assim, “instrumentalizou” a população — ou seja, fez dela um instrumento para sua política de morte que matou milhões de pessoas.
Hoje, com distanciamento histórico, parece inaceitável como tanta gente pode acreditar em justificativas tão terríveis. A leitura do livro de Wilhem Reich nos chama atenção para o papel das emoções nessas crenças.
Isso de forma alguma justifica o que foi feito — o maior crime da história da humanidade –, mas ajuda a compreender como tamanha atrocidade foi possível. Olhar para esse tipo de manipulação é fundamental para evitar que ela volte a ocorrer. Há muita semelhança entre algumas táticas discursivas do nazi-fascismo com os da extrema-direita atual, em países tão diferentes quanto os Estados Unidos, Filipinas, Hungria, Polônia e Brasil.
De um ponto de vista individual, também serve como um importante alerta: de tempos em tempos, vale a pena nos analisarmos “de fora”.
E nos fazermos algumas perguntas:
1- Será que estou sendo excessivamente guiado por emoções na minha tomada de decisão?
2- Será que essas emoções podem estar sendo trabalhadas em mim por outras pessoas? Ou seja, posso estar sendo manipulado por alguém?
3- Será que estou defendendo certas opiniões apenas pelo fato de que elas são minhas?
Achou estranha essa última afirmação? Pode parecer meio ridículo, mas isso acontece, sim. Tanto que psicólogos criaram um termo para defini-la: ego involvement, que em português significa “envolvimento do ego”. Ele nomeia as opiniões que defendemos com unhas e dentes não necessariamente porque acreditamos nelas, mas porque elas são importantes para nossa auto-estima, para nosso pertencimento em um grupo, para que a gente não tenha de admitir que estávamos errados. Em resumo, são justificativas puramente emocionais.
A postura do “nada muda” pode levar a um imobilismo cínico e perigoso — sobretudo, irreal, porque as coisas mudam, sim. O importante, porém, é reconhecer o papel dos afetos na tomada de decisão.
Isso significa, por exemplo, que importam muito os laços que você possui com a pessoa com quem está debatendo. Gente mais próxima e com quem temos abertura para conversar são as pessoas com as quais podemos exercer maior influência. Tanto melhor se a conversa se der de modo civilizado e respeitoso, sem que a gente leve o que está sendo dito para o lado pessoal.
Também é importante persistir. A sociologia mostra que as ideias que mais impactam nossos pontos de vista e as maneiras como agimos são aquelas com as quais a gente tem mais contato durante a vida. É justamente por isso que a família impacta — para o bem e para o mal — nossas formas de ser, agir e pensar de forma tão forte.
Também vale muito a pena cuidar da qualidade do debate. Vejas as alternativas colaborativas na hora da discussão com quem pensa muito diferente de você:
– Repreender educadamente o interlocutor por sua escolha.
– Buscar pontos em comum que possam manter a troca de ideias, apenas das diferenças.
– Praticar a escuta atenta, sem julgamento.
– Bloquear a pessoa para preservar sua sanidade mental.
– Escrever textão nas redes sociais, mas preservando o interlocutor sem citar seu nome.
– Tentar entender quais as razões da opinião, prestando atenção às motivações emocionais.
– Mandar todo dia fontes de informação que questionem o que seu interlocutor te disse.
– Dizer que continua aberto para o debate.
Se você viu pontos em comum, praticar a escuta atenta, tentar entender as razões da opinião e dizer que continua aberto para o debate, acertou! O debate nunca é algo simples — e quando há emoções fortes envolvidas, é mais complicado ainda. No entanto, segue sendo uma das ferramentas mais importantes para a construção de uma sociedade em que as pessoas tenham pontos de contato.