Neste módulo inicial, vamos definir os conceitos importante para que você aprenda a não cair nas grandes ciladas que as fake news apresentam atualmente. Esses conceitos estão desenvolvidos em 4 etapas:
1 – Como saber se é verdade o que ouvi dizer?
2 – E essa história de que a mídia manipula?
3 – O mundo que existe entre a verdade e a mentira.
4 – O mercado lucrativo das notícias falsas.
Ao final do módulo, seus conhecimentos serão testados. Vamos nessa?
Fake news é uma expressão em inglês que costuma ser traduzida como “notícia falsa”. E aqui começam os problemas. Nem sempre o que parece óbvio é óbvio…
A tradução literal mais confunde do que esclarece, porque o sentido das palavras “notícia” e “falsa” é bem mais complexo.
• Notícias não são só o que lemos nos jornais. Fora da área jornalística, podem ser usadas também como “novidades” ou as novas informações que temos. Elas podem incluir o que você viu na rua hoje, voltando para casa, a foto do novo bebê da sua amiga pelas redes sociais, uma lei aprovada no Congresso ou as notícias lidas pelo âncora do telejornal na TV. Para muitas pessoas, isso tudo pode ser uma notícia.
• Falsas também têm muitos significados diferentes. Podem significar um erro, uma informação incorreta que foi compartilhada sem querer, ou podem ser uma fraude, uma mentira contada para enganar mesmo.
Se a definição de “notícias falsas” for muito ampla, vai incluir fenômenos muito diferentes dentro da mesma categoria: vai desde alguém se confundir e dizer que Ronaldo foi o artilheiro da Copa de 2006 (quando, na verdade, foi o da de 2002), até quem mente dizendo que os eleitores podem evitar as filas e enviar seus votos por mensagem de texto do celular (os votos não são computados assim, e essas mensagens simplesmente não contaram para nada).
Para evitar confusão, vale a pena prestar atenção a definições mais específicas, que apontam para um problema mais singular. É o que veremos a seguir.
SIMULANDO UM FORMATO JORNALÍSTICO EM QUE VOCÊ CONFIA
Para esclarecer mais sobre o fenômeno das fake news, vamos recorrer a algumas pesquisas.
Um grupo de pesquisadores de Singapura fez exatamente isso: começou a analisar as diversas definições para o termo “fake news” em meios de comunicação e em publicações acadêmicas. Foi assim que Tandoc, Lim e Ling conseguiram identificar um denominador comum entre vários sentidos divergentes ao redor desse problema.
Assim, fake news seriam:
“publicações virais baseadas em relatos fictícios que são feitos para se parecer com reportagens jornalísticas”.
Essa é uma definição bem mais específica do que “notícias falsas”, pois, além do conteúdo ficcional, ela considera também o formato (que simula o estilo de jornais, sites, áudio e vídeos informativos) e o meio de divulgação (posts em redes sociais, com grande chance de viralizar).
E por que imitar o formato jornalístico?
Essa é uma estratégia proposital: como estamos acostumados a confiar nas informações publicadas em jornais, rádio, TV e sites jornalísticos, quem se disfarça de jornalista pega emprestado a credibilidade dos repórteres e usa essa confiança para tentar enganar o público. Algumas páginas de fake news inclusive imitam sites já existentes para enganar a audiência desatenta que não percebe essas pequenas diferenças.
Outras definições mais acadêmicas focam em outro aspecto: a intenção de quem publica. Uma dupla de pesquisadores dos EUA definiu fake news como:
“artigos jornalísticos que são intencionalmente e comprovadamente falsos, e que possam enganar seus leitores”.
É assim que os pesquisadores Allcott e Gentzkow destacaram o fato de que não é qualquer relato jornalístico incorreto que pode ser considerado fake news: para escrever algo fake, não basta estar enganado; tem que ser um enganador.
Outro elemento importante para esses pesquisadores é a comprovação. Quem escreve sabe que não é verdade. Esse é um dos pontos fracos das fake news: podemos provar que essas informações não são verdadeiras.
A definição da dupla norte-americana também destaca uma outra estratégia das fake news: uma informação incorreta só pode enganar o público se for dissimulada, ou seja, ocultar o fato de que está tentando enganar. Isso diferencia as fake news das ficções tradicionais, ou mesmo, das piadas. Nesses casos, quem ouve a história sabe que ela não é realmente de verdade e, por isso, não se engana.
O grupo de pesquisadores de Singapura destaca outra questão bastante problemática: existem alguns sites que imitam a linguagem jornalística, publicam informações que não são verdadeiras, mas que não podem ser considerados fake news simplesmente por deixar implícito que publicam absurdos.
É o caso de paródias (imitações humorísticas) e sátiras (ironias e críticas humorísticas). Um exemplo é o site Sensacionalista, que faz piada com a linguagem jornalística. O próprio slogan do site já deixa claro o que ele é: “isento de verdade”, que critica a tudo e a todos, mas sempre sinalizando a “falta de informações verdadeiras”.
Ou seja: o objetivo não é enganar ninguém. Esses sites de humor esperam que o público seja inteligente o suficiente para entender suas piadas, enquanto os sites de fake news dependem da ignorância do público para enganar. Isso só reforça a responsabilidade do público para não acabar sendo o alvo de piadas, repassando informação humorística como se fosse verdade.
Se o papel do público não pode ser ignorado, mais importante ainda é considerar a responsabilidade do autor do texto. E nesse sentido encontramos um fenômeno bastante peculiar: muitos sites que publicam fake news procuram ocultar, disfarçar ou dissimular a autoria dos textos e da equipe responsável.
Dessa forma, tentam evitar as consequências da publicação de tantas mentiras, ocultando quem são e, assim, fugindo de possíveis consequências judiciais — afinal, a responsabilidade por uma informação é de quem a publica.
É nesse sentido que este curso define fake news como:
publicações que viralizam em redes sociais a partir de informações comprovadamente falsas, com um formato que simula o estilo jornalístico para enganar o público, ocultando sua autoria.
Essa é uma definição bem específica e, neste curso, não vamos tratar só de notícias falsas. Vamos falar do amplo guarda-chuva da desinformação — recomendamos fortemente que você leia o texto a seguir para entender a bem essa diferença. Afinal, só dá para jogar direito um jogo se nós conhecemos suas regras: sem isso, podemos ser trapaceados.
Há muitas formas de contorcer as regras do jogo comunicativo para ludibriar os outros. As fake news são uma das armas dentro de um arsenal diversificado voltado a esse propósito.
O conceito de desinformação é, segundo a pesquisadora norte-americana Claire Wardle, um termo amplo que funciona como um guarda-chuva, cobrindo vários fenômenos que têm, em comum, a disseminação de informações enganadoras. Destacamos que esses enganos podem ou não ser intencionais, podendo incluir também erros de interpretação por parte do público. É nesse sentido que os pesquisadores brasileiros Marta Pinheiro e Vladmir Brito consideram que desinformação inclui também informação de baixo valor ou utilidade, que “não supriria o indivíduo com conhecimento necessário para participar do processo político e tomar as decisões necessárias ao progresso de sua própria vida e de seus semelhantes”.
Entre essas definições, vamos destacar os elementos comuns: desinformação é a situação em que a notícia ou outra forma de transmissão da informação não está de acordo com os fatos – ou seja, não conta adequadamente como os acontecimentos se passaram.
Desinformação diz respeito a casos em que a notícia ou outra forma de transmissão da informação não está de acordo com os fatos – ou seja, não conta adequadamente como os acontecimentos se passaram. E isso é um problema porque a informação nos auxilia na construção de visões de mundo e na tomada de decisões. Quando a informação tem algum ruído ou é de má qualidade, nossas decisões correm o risco de serem igualmente ruins, já que estão baseadas em dados incorretos.
A desinformação é objeto de pesquisa pelas ciências da informação e da comunicação. As formas de ruídos na comunicação variam em diversos aspectos. Destacamos dois:
• Elas possuem efeitos negativos de graus diferentes
• Podem ser resultado tanto de uma tentativa proposital de enganar quanto de uma falha de compreensão por parte de quem lê, vê ou escuta uma notícia.
Para construir o curso Vaza, Falsiane!, nós, os autores, fizemos uma pesquisa do tipo “estado do conhecimento” da desinformação. Investigamos teses, dissertações, livros e artigos científicos para entender como os especialistas definem e classificam os diferentes “vírus” presentes na comunicação.
Nossa intenção foi criar uma classificação simples e didática. Por isso, nos baseamos em termos que são comumente encontrados no debate público.
Toda classificação precisa de critérios. Por aqui, depois de analisar a produção na área, chegamos a quatro aspectos para diferenciar os tipos de desinformação: intencionalidade, autoria, factualidade e competência.
No menu interativo abaixo, explicaremos os quatro critérios que utilizaremos para diferenciar os tipos de desinformação
O emissor de informação comunicou propositalmente um relato falso ou de má qualidade informativa?
A autoria do relato está clara – ou, ao contrário, é oculta?
O que foi comunicado ou noticiado está de acordo com o que se sabe a respeito de como os fatos realmente ocorreram?
A pessoa que leu, viu ou escutou o relato ou notícia conseguiu compreender adequadamente o que leu?
No quadro a seguir, você confere como esses critérios se combinam nos diferentes tipos de desinformação. Os “botoezinhos” indicam o grau de presença dos critérios. Agrupamos os tipos de desinformação em três categorias:
Na primeira categoria estão as informações que são intencionalmente falsas, ou seja, foram passadas para frente mesmo sabendo-se que não eram verdadeiras. São também relatos com autoria oculta ou anônima, não assinados ou genericamente apresentados por uma marca, um partido político etc. Nesse grupo, incluímos os casos de fake news, fraudes e disfarces.
Saiba que a manipulação é um tipo particularmente grave de desinformação: ela é criada, por exemplo, imitando certos veículos da imprensa conhecidos de forma a enganar a audiência que está acostumada a se informar por esses canais e que confia em suas notícias.
Esta categoria reúne tipos de desinformação cuja característica mais importante é algum grau de comprometimento na factualidade: são relatos ou comunicações que distorcem – em diferentes intensidades – como os fatos realmente ocorreram. Distingue-se da manipulação porque, aqui, a informação tem autoria clara – e não é possível afirmar se o autor teve ou não a intenção de enganar. Estamos falando de enviesamento (ou hiperpartidarização), descontextualização de fatos, sensacionalismo, boatos (ou rumores), falsa controvérsia e erro jornalístico.
No caso do enviesamento ou hiperpartidarização, identificamos determinados veículos jornalísticos exaltando as qualidades dos grupos políticos que apoiam, enquanto exageram os defeitos dos adversários. Pontos de vista que caberiam melhor em artigos de opinião são oferecidos ao público como se fossem jornalismo informativo, desrespeitando a precisão e a pluralidade que a notícia deve buscar.
É também o que ocorre nas situações de descontextualização. Trata-se de notícias ou outros relatos em que a informação é contada pela metade ou quando a manchete diz uma coisa que o texto não confirma – uma ocorrência que alguns especialistas também chamam de “falsa conexão”.
Outro tipo de parcialidade é o sensacionalismo. Nele, um assunto é tratado de maneira exagerada ou distorcida, de forma a causar pânico, impacto ou chocar a opinião pública. Os programas policiais vespertinos de TV se apoiam fortemente nessa estratégia.
Aqui também estão os boatos ou rumores. Estamos falando de informações não checadas (ou seja, que não se sabe se são verdade), geralmente dadas em off – quem passou o dado não quer se identificar – e podem servir a algum interesse político ou econômico. Há colunas de bastidores políticos e programas de fofocas sobre celebridades que se baseiam inteiramente em boatos e não apresentam fonte alguma “de cara limpa” para confirmar a história.
Já a falsa controvérsia diz respeito a um tema que parece ser uma polêmica, mas, na verdade, não é. O exemplo clássico é o aquecimento global. A maioria dos cientistas concorda que a ação humana tem forte influência no aumento da temperatura da Terra. Porém, algumas reportagens ouvem um cientista contra e outro a favor dessa hipótese como se houvesse de fato uma disputa no campo científico quando, na verdade, não há.
Por fim, incluímos aqui também o erro jornalístico. Toda vez que algum veículo sério comete um equívoco de informação, ele é obrigado a corrigi-lo, se possível, com o mesmo destaque da informação equivocada. Ocorre que nem sempre essa é a norma – muitas vezes, as seções do tipo “erramos” ficam escondidas; na internet, textos são alterados ou mesmo apagados sem aviso ao leitor. E, mesmo quando o destaque é correto, muitas vezes é tarde demais para corrigir o dano causado à reputação de alguém, por exemplo, que foi falsamente acusado por um crime.
A terceira categoria de desinformação engloba os casos em que a confusão não nasce na boca de quem fala, mas sim no ouvido e nas conexões cerebrais do público, que muitas vezes não compreendem adequadamente o que está sendo informado. Está em jogo, portanto, a competência da audiência. A boa notícia é que ela pode ser aprimorada adquirindo-se maior experiência do que se chama “leitura crítica” da mídia. Nosso curso ambiciona oferecer algumas ferramentas para isso. Acompanhe!
A categoria incompreensão engloba, por exemplo, os textos de opinião que são confundidos com informação. São publicações que explicitamente defendem um lado: é a visão do autor do texto, que vai apresentar argumentos para sustentar suas ideias. Confundir opinião com fato é um equívoco de interpretação. Se o público achar que um texto opinativo é a verdade, vai ignorar que existem outras opiniões que também podem ser válidas e que essa opinião pode, portanto, ser contestada.
Esse grupo também inclui os casos de sátira, quando se usa o humor para apresentar, de forma exagerada, resumos, críticas ou comentários sobre as notícias. É o caso de programas jornalísticos que se baseiam em notícias verdadeiras para fazer piadas.
Por fim, temos as paródias. Elas simulam a linguagem do jornalismo para fazer humor, criando eventos ficcionais para isso. Assim como a sátira, a paródia usa uma receita seguindo o estilo jornalístico, mas ela se diferencia da primeira porque seus ingredientes são também falsos, fabricados com a intenção da piada.
É tanta forma diferente de desinformação que dá até para confundir os enganos acidentais com as sacanagens de propósito. Mas, por que tanta bagunça tem se espalhado?
Dois fatores importantes ajudam a entender porque esse fenômeno tem se tornado mais ameaçador atualmente. Um deles se conecta com um processo geral da nossa sociedade; o outro trata de uma característica específica dos nossos novos veículos de comunicação.
Primeiro, precisamos reconhecer que as notícias falsas se espalham porque são convenientes. Elas são uma ferramenta perfeita, pois se encaixam nos objetivos políticos e/ou econômicos de quem as produz e atendem a uma demanda entre suas vítimas. As pessoas se enganam porque querem acreditar nessas mentiras.
Em um cenário muito polarizado, com opiniões extremas sendo arremessadas de um lado para o outro e sem muitos temas consensuais, essas mentiras acabam sendo instrumentalizadas para servir aos propósitos de quem as espalha – e aqui vale tanto para seus criadores quanto para seus propagadores “inocentes”.
Uma equipe de pesquisadores da UFMG identificou uma correlação entre polarização política e difusão de notícias falsas. Em um cenário de hiperpartidarização, todos os lados atropelam os fatos para municiar seus defensores com mentiras produzidas com o intuito de confundir, atrair aliados e atacar opositores. Nessa luta livre, os fatos são ignorados porque, importante mesmo, é ganhar a discussão.
Isso ajuda a entender a razão de tanta gente gastar tempo difundindo pelas redes conteúdo que nem é verdade – são mentiras convenientes.
Em segundo lugar, a forma como nos informamos também pode favorecer essa confusão toda. As mídias tradicionais costumavam ter fronteiras muito demarcadas entre conteúdos diferentes: o telejornal tem o intervalo comercial; a revista tem artigos de opinião, páginas de anúncio e textos informativos; o locutor do rádio lê as notícias, e depois, um anunciante faz propaganda.
Usamos cada vez mais plataformas como as redes sociais, que misturam informação, publicidade e opinião com memes, textão do seu amigo militante, convite para festa de aniversário, foto da sua sobrinha que acabou de nascer e vídeo de gatinho fofinho dentro de caixa de papelão. Aqui mora o perigo. São diversos conteúdos completamente diferentes, aglutinados no mesmo lugar, um seguido do outro, sem uma ordem predeterminada ou fronteiras claras que os delimitem. É importante que todos consigam identificar cada um desses conteúdos e diferenciar seus objetivos e como cada um se aproxima (ou se distancia) dos fatos.
Quem não conseguir vai acabar se confundindo e pode se basear em informações imprecisas na hora de tomar decisões importantes, com resultados bem problemáticos.
A liberdade de expressão é essencial para a democracia. Mas ela tem limites? É mais importante que outros direitos? Neste vídeo, explicamos a importância da liberdade de expressão – e o que pode acontecer quando seus limites são ultrapassados.
A histeria com as fake news parece recente, mas é bem antiga a história de mentiras publicadas como se fossem verdade. Dos imperadores romanos até o bebê diabo brasileiro, passando pelos jornais que noticiaram a vida na Lua ou a rádio que contava a invasão marciana da Terra, a desinformação não é, de fato, uma novidade.
A criatividade e a falta de compromisso com a informação do público parecem não ter mudado tanto com o tempo. O que muda é a velocidade de propagação e o tamanho do público que tem acesso a esses boatos – além dos danos que eles causam. A seguir, dez momentos que ajudam a perceber o quanto é antiga a preocupação com informações questionáveis em meios de comunicação.
Depois de publicar uma história oficial enaltecendo o imperador romano Justiniano, no século VI, o historiador bizantino Procópio deixou um manuscrito de sua “História Secreta”, ou Anecdota, para ser publicado somente após sua morte. Nessa nova versão, que o historiador Robert Darnton considera como uma das mais antigas fake news, Procópio espalhou informações bastante questionáveis para acabar com a reputação dos governantes que havia elogiado antes, incluindo intrigas quase pornográficas com ataques à vida sexual da imperatriz Teodora.
Durante as grandes navegações que uniram os continentes a partir do século XIV, o fluxo de mercadorias, escravos e colonizadores também levava junto relatos sobre as novas terras para o público europeu, sedento por novidades das descobertas. Os jornais começam a surgir nessa época, trazendo preços de produtos em diferentes mercados, mas misturavam essas informações técnicas e precisas com histórias bizarras de seres monstruosos.
Não foi só pau-brasil que encantou os portugueses em nossas terras: nosso país também contribuiu com monstros mitológicos que surgiam nos relatos de fontes locais, consultadas por jesuítas e cronistas. O português Pero de Magalhães Gândavo publicou em 1576 sua história do Brasil e tentou corrigir os retratos “que andam errados” na imprensa europeia sobre um bicho parecido com um leão-marinho, retratado nessa imagem, que teria sido visto em São Vicente.
Quando os jornais começaram a se organizar como forças políticas, no século XVIII, muitos escritores corriam pelos bares e cafeterias para compilar fofocas, escrevendo relatos curtos para difamar os poderosos e cidadãos comuns. Depois, esses textos eram editados em jornais e anunciados pelas ruas, sem preocupação para checar se era verdade ou não. Na Inglaterra, esses autores eram conhecidos como “homens parágrafo”, porque produziam histórias curtas, às vezes em uma só frase – eram os avós do Twitter. O historiador Robert Darnton lembra que alguns desses autores eram pagos, mas outros se contentavam em manipular a opinião pública para promover ou destruir carreiras.
Na França, pequenos panfletos políticos chamados canards revelavam (e inventavam) casos de sexo e ostentação na corte, o que enfurecia seus leitores empobrecidos. Mas esses libelos eram mais propaganda política exagerada que jornalismo de verdade, e ajudaram a arruinar a imagem da realeza, contribuindo para as revoltas populares que levaram à Revolução Francesa.
Em 1835, o jornal norte-americano The New York Sun publicou o relato do astrônomo John Herschel, que teria descoberto vida na lua a partir de um observatório na África do Sul. Durante cinco dias o jornal noticiou as descobertas de florestas lunares, unicórnios azuis com barba de bode, castores que viviam em cabanas e homens alados, que o cientista chamava de Vespertilio-homo, ou seja, homens-morcegos.
Mas essa história toda era tão inventada quanto o Batman. Aparentemente um escritor inglês que trabalhava para o jornal inventou o caso, e usou sem autorização o nome verdadeiro de um astrônomo bastante famoso, que deu nomes às luas em Saturno e Urano – mas Herschel nunca afirmou ter visto vida nelas ou no nosso próprio satélite.
Quando os jornais ganham grandes tiragens, viram empresas lucrativas e suas notícias deixam de ser destinadas somente à uma minoria na elite, seus donos percebem que os relatos mais amalucados podem trazer uma boa grana. Surge a chamada “imprensa marrom”: jornais populares, muito baratos e com uma linguagem e temática mais simples, próxima do interesse da maioria da população, que começava a se alfabetizar. Nos EUA, custavam só um centavo, e com isso conseguiam vender centenas de milhares de exemplares.
O negócio também envolvia grande influência política. Em 1898, jornais americanos retrataram a explosão do navio Maine, que estava em Cuba, como um ataque espanhol, e fizeram uma campanha aberta que levou à guerra entre EUA e Espanha. Segundo o historiador Edwin Emery, a causa da explosão não estava muito clara, e dificilmente envolveria um ataque direto da Espanha: mais provavelmente foi alvo de sabotagem interna ou por parte dos cubanos, que queriam forçar a intervenção dos EUA na ilha.
Mas os editores dos jornais estavam interessados mais na guerra e na venda dos jornais do que nas provas, e essa campanha sensacionalista conseguiu seu objetivo: os dois países entraram em conflito no mesmo ano, com uma cobertura aprofundada dos periódicos.
Na véspera do Halloween de 1938, a rádio norte-americana CBS resolveu fazer uma apresentação especial em seu programa de dramatizações de obras literárias: uma adaptação do livro “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, dirigida pelo então pouco conhecido cineasta Orson Welles. Como o programa de rádio seguia a história em formato jornalístico, logo no começo da apresentação, o locutor explicou que se tratava de fantasia inspirada na história ficcional do livro.
Entretanto, quase metade da audiência sintonizou o programa no meio e, sem esse alerta, acabou acreditando que a invasão de marcianos relatada na história do livro estaria acontecendo de verdade. Resultado: pânico generalizado, com congestionamentos e ligações desesperadas para a polícia. A emissora de rádio calculou que mais de um milhão de pessoas acabou enganada sem querer e pensou que o mundo estava acabando.
O repórter David Nasser e o fotógrafo Jean Manzon formavam uma das duplas mais famosas do jornalismo brasileiro. Quando a revista O Cruzeiro trouxe a notícia da morte de Manzon após um atropelamento, em 6 de maio de 1944, a comoção foi generalizada: diversos jornais repercutiram a tragédia, a redação da revista recebeu coroas de flores e até a assessoria do presidente Getúlio Vargas ligou para lamentar a perda.
A edição seguinte trazia, entretanto, o fotógrafo vivinho, no bar, cercado das flores que foram enviadas em homenagem à sua “morte”. A legenda da foto avisava que tudo se tratava de uma “reportagem ficcionista”, inventada pelo fotógrafo e escrita por seu colega. Luis Maklouf Carvalho conta, em sua biografia de David Nasser, que a macabra pegadinha tinha sido autorizada pelo proprietário do jornal, Assis Chateaubriand, que ao contrário de se enfurecer com a falta de profissionalismo de seus jornalistas, adorou a iniciativa. A morte caiu bem e deu ainda mais espaço e prestígio para Manzon e Nasser na revista, que continuaram a inventar e exagerar suas histórias.
Em maio de 1975,o jornal Notícias Populares trazia na manchete o nascimento de um bebê demoníaco, com chifres e rabo, que já falava e ameaçava a todos de morte. O jornal esgotou nas bancas, e no mês seguinte dezenas de manchetes e reportagens acompanharam a saga do bebê, que teria fugido de seu hospital, em São Bernardo, no ABC paulista, até ser capturado.
Mas o bebê diabo não nasceu em uma maternidade: era cria da imaginação dos jornalistas. Os editores desse jornal, famoso por suas histórias sensacionalistas de apelo popular, propositadamente distorceram o relato de um de seus repórteres, que contava uma história muito mais simples sobre um bebê que nascera com pequenas saliências na testa e no cóccix. A população caiu na invenção, e a tiragem do jornal dobrou, passando de 70 mil exemplares para 150 mil.
Um retrato falado circula entre os membros da página “Guarujá Alerta”, no Facebook. Junto com ele, surge o boato de que a suspeita era acusada de sequestrar crianças para rituais de magia negra. No dia 3 de maio de 2014, dezenas de pessoas cercam a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, porque acham que ela é parecida com a mulher retratada. Enfurecidos, lincham Fabiane, que morre dias depois.
Os agressores ignoravam que, na verdade, essa imagem havia sido feita pela polícia do Rio de Janeiro em um caso não relacionado de tentativa de roubo de bebê, dois anos antes e há quase 500 km de distância. Fabiane era inocente, e foi executada sem chance de se defender. Como o linchamento foi filmado por um celular, muitos agressores foram identificados e acabaram condenados a até 40 anos de prisão por matar – seguindo um boato sem fundamento.
O ano de 2016 marcou a ascensão das chamadas “fake news”, como a história falsa de que o Papa Francisco apoiaria a candidatura de Donald Trump para a presidência dos EUA – mais de 900 mil pessoas interagiram com essa história pelo Facebook.
Uma série de reportagens começou a desmascarar sites que estavam inventando essas mentiras para ganhar dinheiro enganando leitores e eleitores. Com isso, o dicionário Oxford elegeu como palavra do ano de 2016 o termo “pós-verdade”, que trata das “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos emocionais ou crenças pessoais”.
Para entender melhor os limites da liberdade de expressão, assista este vídeo do filósofo Mario Sergio Cortella. Nele, há uma importante explicação sobre a diferença entre as opiniões e o conhecimento que pode ser comprovado. Cortella também destaca que devemos tomar cuidado na hora de difundir acusações, pois elas precisam ser baseadas em provas. Utilize a sua voz nas redes para propagar notícias verdadeiras.
Já ouviu falar em falácia?
É um tipo de raciocínio falso ou impreciso que pretende se passar como verdade.
Em geral, as falácias são argumentos inseridos dentro de textos, se tornando, assim, formas de manipulação – ou seja, ajudam a compor um discurso que tenta influenciar o pensamento e a ação das pessoas com argumentos enganosos.
Às vezes, acabamos aceitando como válidas ideias que não passam de falácias. E acabamos manipulados. A boa notícia é que alguns princípios de lógica e de construção de argumentos ajudam a identificar a enganação.
Neste exercício, você vai ler algumas afirmações meio “esquisitas”. Leia, reflita um pouco sobre elas. Depois leia o comentário questionando a veracidade do que está escrito.
Vamos lá?
Em geral, as falácias são argumentos inseridos dentro de textos, se tornando, assim, formas de manipulação – ou seja, ajudam a compor um discurso que tenta influenciar o pensamento e a ação das pessoas com argumentos enganosos.
Às vezes, acabamos aceitando como válidas ideias que não passam de falácias. E acabamos manipulados. A boa notícia é que alguns princípios de lógica e de construção de argumentos ajudam a identificar a enganação.
Neste exercício, você vai ler algumas afirmações meio “esquisitas”. Leia, reflita um pouco sobre elas. Depois leia o comentário questionando a veracidade do que está escrito.
Vamos lá?
Temos aqui uma falsa relação de causalidade – quem disse que a criminalidade é causada pelos mais pobres? A frase omite possíveis causas. A realidade é múltipla e nem sempre captamos todas as motivações de um fenômeno. No caso em questão, seria preciso mencionar a desigualdade, a falta de oportunidades às classes mais vulneráveis, a atração que o modo de vida do crime exerce sobre os mais jovens, o preconceito social e da polícia, a evasão escolar etc.
A informação é incorreta, mas se torna notória porque vem da boca de uma suposta “autoridade” – a afirmação é do presidente do Conselho Pontifício para a Família, um órgão da Igreja Católica. Desconfie dos argumentos de autoridade. É preciso provar o que se diz – no caso específico, com evidências científicas. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), estudos em laboratório mostram que os preservativos são “altamente efetivos”na prevenção ao HIV pois proporcionam uma barreira impermeável para o vírus
O argumentum ad hominem – que em latim significa “argumento contra a pessoa” – também é um tipo de falácia. Ele é usado quando alguém quer invalidar um ponto de vista atacando não o argumento, mas o argumentador. Num debate, não se questiona o autor, mas, sim, o conteúdo da ideia. São os conceitos e opiniões que devem ser postos à prova, não quem está falando.
Estamos diante de uma oposição clássica: trabalho intelectual versus trabalho manual. Fica subentendido que é mais valioso ser um filósofo humanista do que um encanador. Quem disse? Preconceitos e simplificações sobre o adversário devem ficar de fora de uma troca de ideias racional. Não se ridiculariza a posição contrária.
Mais um exemplo de argumento sem evidências. Quem garante que um eventual governo militar faria a criminalidade baixar? É preciso apresentar dados que comprovem a tese e rebatam as ideias contrárias. Não se deve supor a resposta. Raciocínios por hipótese devem estar amparados por fatos concretos.
Eis uma falácia clássica dos tempos de eleição: o candidato mostra tudo o que ele fez de bom e varre a sujeira para debaixo do tapete. Cabe questionar: e as taxas de desemprego? A desigualdade caiu? E a economia está crescendo de verdade? Não se deve contar os acertos e esquecer os fracassos. Num debate franco de ideias, a realidade precisa ser mostrada em todos os seus aspectos, sejam positivos ou não.
Novamente, estamos diante de uma falsa relação de causa e consequência. Aqui, a estratégia é tentar estabelecer a ligação causa-efeito se aproveitando da distância no tempo entre os dois acontecimentos. Mas um fato que acontece depois do outro não necessariamente foi causado pelo primeiro. Eles podem ser – como é o caso – completamente independentes um do outro. O argumentador precisa apresentar evidências de que o fato mais recente decorre do primeiro.
Nos anos 1980, havia um slogan famoso de uma fabricante de bolachas: “Vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”. A propaganda brinca com a dificuldade de estabelecer uma correlação entre os eventos. A mesma dúvida aparece nas frases em destaque: às vezes, não dá para saber o que é causa e o que é consequência. A chamada inferência causal – que é quando se afirma a verdade de uma proposição porque outras semelhantes já foram reconhecidas como verdadeiras – precisa vir acompanhada de dados empíricos (números, estatísticas, fontes de pesquisa etc.)
As frases induzem a uma falsa oposição fazendo a gente pensar que só existem duas posições – opostas – possíveis. Mas, numa discussão desapaixonada, não se exclui o meio termo. Posso não amar o Brasil, mas nem por isso querer deixá-lo (minha opção pode ser lutar para melhorar as coisas de que não gosto). Da mesma forma, posso optar por não ser parte da solução nem do problema (posso me ausentar da discussão, posso pedir que me definam o que é “solução”, posso propor outras saídas para uma dificuldade etc.)
Novamente, estamos diante de uma falsa oposição. Preste atenção nas frases: por que precisamos escolher ou uma ação ou outra? Uma atitude pode ser mais imediata, enquanto a outra só vai dar resultados mais adiante. Não se opõe curto e longo prazo. Uma ação não invalida a outra. Em alguns casos – como nos exemplos acima –, são complementares.
Já ouviu falar em eufemismo? É a palavra que se usa para suavizar o efeito de outra que seria, em tese, mais agressiva. Por exemplo, falecimento é um eufemismo para morte. Mas uma palavra mais suave não altera a dura realidade. Nas frases em destaque, os eufemismos são parte de um vocabulário supostamente mais técnico. O que elas designam, porém, segue sendo duro para quem é afetado pelas ações. “Redimensionamento do quadro de empregados” é um eufemismo para demissão. E “ajustes no preço” significa, claro, que o valor da passagem vai subir.